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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Uma Apreciação Crítica do livro de Rudolf Bultmann, "JESUS CRISTO E MITOLOGIA"

19.04.2024
Do blog de TIAGO ABDALA, 19.06.09
Por Tiago Abdala

O livro de Rudolf Bultmann "Jesus Cristo e Mitologia" é uma coletânea de palestras proferidas em diversas faculdades e universidades, muita delas situadas no continente norte-americano.[1] A obra é concisa, mas explica e defende importantes pontos da hermenêutica da desmitologização,[2] proposta por Bultmann, em sua abordagem do Novo Testamento. Dentro disso, questões como escatologia, mito e história, existencialismo filosófico e revelação são tratadas pelo autor.

No primeiro capítulo do livro (p. 11-18), procura-se mostrar a concepção, tanto de Jesus quanto da comunidade cristã primitiva, de que o reino de Deus se constituía num grande drama cósmico escatológico, que traria o julgamento sobre os injustos e inauguraria o novo tempo de felicidade para os justos. Tal perspectiva é entendida por Bultmann como mitológica e antiga, portanto, totalmente incompreensível para o homem moderno, o qual possui uma concepção de mundo científica e enxerga os eventos como uma relação de causa e efeito. Assim, ele propõe a necessidade e possibilidade de se interpretar o significado mais profundo por trás das concepções mitológicas da pregação neotestamentária, a fim de que esta continue a ser relevante para o homem moderno.

Sem dúvida, é importantíssima a percepção de Bultmann acerca da distinção entre a cosmovisão da época dos autores bíblicos e da era moderna. Qualquer método hermenêutico bíblico que se preze, precisa compreender o abismo histórico, científico e cultural interposto entre o leitor moderno e o autor bíblico. Além disso, o autor destaca com propriedade a necessidade de se perceber qual a relevância da mensagem do Novo Testamento para o mundo de hoje. Isto, certamente, é uma resposta à escola da “história das religiões”, a qual por meio do método histórico-crítico se preocupava em compreender o passado sem dar importância ao seu relacionamento com o presente.[3] Ele demonstra sensibilidade e perspicácia, ao questionar o uso meramente ético da mensagem de Jesus e, também, em reconhecer que há algo mais na pregação do reino de Deus além de sua redução ao evangelho social. Tais observações confrontam diretamente o liberalismo teológico, especialmente as propostas de Schleiermacher, Ritschl e Harnack que reduziram o cristianismo à ética do amor e justiça, e à preocupação com questões sociais.[4]

Em contraparte, a ligação direta que o autor faz do conceito de reino de Deus escatológico de Jesus com os círculos judaicos de sua época requer consideração. A única distinção que Bultmann faz entre as duas perspectivas escatológicas, diz respeito aos detalhes das descrições apocalípticas, presentes nos escritos judaicos, mas ausentes na mensagem de Jesus. Com exceção disto, para Bultmann, Jesus “não deixou de participar da expectação escatológica de seus companheiros”.[5] Porém, o autor falha em não observar que há diferenças profundas por trás das semelhanças superficiais.

Uma delas é a perspectiva exclusivista refletida nos escritos apocalípticos judaicos, pós-exílicos, a respeito do reino de Deus como pertencente a Israel e que promove sua soberania sobre as demais nações (Ver Assunção de Moisés 10.8-10; Jubileu 15.31; 31.7-17). Enquanto isso, o reino de Deus proclamado por Jesus requer o arrependimento e confiança nas boas novas do reino por parte de todos, sejam judeus ou gentios (Mc 1.15; 10.15; Lc 5.27-32). Os próprios filhos naturais do reino poderão ficar fora dele, ao passo que muitos gentios entrarão e participarão de seu banquete (Mt 8.11-12).

Outro exemplo que revela uma diferença marcante entre o judaísmo e a mensagem de Jesus é o conceito messiânico. Para o judaísmo, o Messias possui um caráter fortemente político (cf. Salmos de Salomão 17.21ss; 4 Edras 7.26ss; Apocalipse de Baruque 72ss), em nada se assemelhando ao Servo Sofredor, proclamado e vivenciado por Jesus, que dá a sua vida como resgate de muitos (Mt 20.28; Mc 8.29-31; 10.45).

O significado da mitologia desenvolvido por Bultmann, ainda no primeiro capítulo, requer avaliação e crítica. Especialmente, por igualar a visão mitológica antiga com a cosmovisão bíblica:

A mitologia ... Crê que o mundo e a vida humana têm seu fundamento e seus limites em um poder que está mais além de tudo aquilo que podemos calcular ou controlar. A mitologia fala deste poder de forma inadequada e insuficiente, porque o considera um poder humano. Fala de deuses, que representam o poder situado mais além do mundo visível e compreensível...
Tudo o que acontece é igualmente válido para as concepções mitológicas que se dão na Bíblia.

Os evangelistas, inclusive João, não parecem retratar a vida e obra de Jesus de Nazaré em termo míticos ou simbólicos. Sua preocupação é mostrar que são testemunhas reais ou pesquisadores de um evento que se deu no tempo e espaço, passível de constatação humana. Lucas, no início de seu evangelho, ressalta que sua obra é fruto de investigação cuidadosa acerca dos fatos ocorridos durante a vida, morte e ressurreição de Jesus (Lc 1.1-4). João mostra que a visão humana do primeiro século não era exclusivamente mitológica como Bultmann afirma, pois, diante do anúncio acerca da ressurreição de Jesus pelos discípulos, Tomé demonstra um ceticismo digno do homem moderno (Jo 20.24-25) e só crê quando se depara com o fato diante de seus olhos (20.26-29).

No Novo Testamento, a Primeira Carta de João tem como um dos focos principais refutar a perspectiva mitológica do gnosticismo incipiente e, para isso, o apóstolo descreve Jesus como um ser humano histórico, capaz de ser visto, ouvido e apalpado (1 Jo 1.1-4). Quando Paulo afirma a ressurreição física de Cristo, não deixa espaço para a idéia de mito, mas, fundamenta este fato no testemunho de várias pessoas que se encontraram com o Jesus ressurreto (1 Co 15.3-8). Igualar a perspectiva mítica de religiões antigas à cosmovisão do kerygma bíblico é um equívoco grotesco.

No segundo capítulo do livro (p. 19-28), o autor desenvolve o significado da escatologia neotestamentária, traçando paralelos e distinções entre o pensamento bíblico e o grego. Como resultado, Bultmann destaca que dentro do pensamento escatológico cristão se encontra a concepção de que este mundo carece de valor, por causa da maldade humana e devido ao juízo iminente de Deus. Assim, os homens são chamados ao arrependimento e ao cumprimento da vontade de Deus, na expectativa da felicidade futura e eterna, após a morte, que trará liberdade do pecado e comunhão serena com Deus. Para o autor do livro, tal perspectiva é entendida como mitológica, cujo sentido mais profundo significa estar aberto ao futuro de Deus para cada ser humano, o qual será de juízo para aqueles que se prendem a este mundo e não se abrem ao futuro divino.

A desmitologização da escatologia bíblica implica em ver o reino escatológico em seu início na vinda de Jesus e como um acontecimento presente. Assim, Bultmann entende que tanto Paulo, de modo parcial, e João, de maneira radical, iniciaram este processo hermenêutico em seus escritos. No capítulo seguinte (p. 29-35), de modo mais específico, propõe-se a demonstração da diferença entre a visão bíblica, que cria em milagres mediante a intervenção direta do sobrenatural sobre o mundo natural, e a perspectiva moderna que busca compreender os acontecimentos do mundo de forma racional, indagando a respeito de suas causas e recorrendo aos resultados das diversas ciências.

O autor chega à conclusão de que é necessário abandonar a visão de mundo mitológica bíblica, a fim de perceber a importância de seu sentido mais profundo, o qual consiste num chamado ao homem moderno para que abandone toda a segurança em suas próprias capacidades e recursos científicos e se disponha a encontrá-la somente em Deus. Assim, diante da invisibilidade e incompreensibilidade de Deus no âmbito do mundo e pela razão humana, a fé consiste em estar aberto para encontros existenciais e pessoais com Deus, o qual permanece um mistério.

As observações e propostas de Bultmann nestes dois capítulos, resumidos acima, mostram-se deficientes em alguns pontos. Primeiramente, não se pode dizer que Paulo e João iniciaram o processo de desmitologização da pregação escatológica de Jesus, pois, ainda que enxergassem certos acontecimentos ocorridos com Cristo e a partir de sua ressurreição como cumprimento das esperanças proféticas, isso não os levou a descartar a cosmovisão bíblica de milagres e da ação do sobrenatural neste mundo. É verdade que para Paulo a ressurreição de Cristo marcava o início da era escatológica (1 Co 15.20-23; 2 Tm 1.10), mas seu cumprimento pleno é visto, ainda, como futuro, na segunda vinda dele e na ressurreição/transformação dos que lhe pertencem (1 Co 15.23, 50-57; cf. 2 Tm 4.1; Tt 2.13). Já participamos dos últimos dias, mas ainda não completamente. Portanto, a citação de 1 Coríntios 15.54 pelo autor do livro,[6] como indicação de uma compreensão paulina do cumprimento presente das expectativas escatológicas, é totalmente inadequada e fora de contexto, já que Paulo faz este pronunciamento diante de algo que ainda está por se cumprir, não como uma realidade completamente presente (tóte genésetai ho lógos ho gegramménos, katepóthe ho thánatos eis nîkos).

Além disso, a suposta desmitologização radical de João, interpretando o julgamento e ressurreição escatológicos como ocorridos totalmente na ressurreição de Jesus (“Para João, a ressurreição de Jesus, Pentecostes e a parousia são um só e mesmo acontecimento”[7]), conforme defende Bultmann, não pode ser sustentada diante de um exame mais acurado da escatologia joanina. Por exemplo, no evangelho há a menção da ressurreição futura no “último dia” (Jo 6.39-40, 44, 54) e de um juízo ainda por se dar no “último dia” (Jo 12.48). Na primeira Epístola, a parousia é um acontecimento futuro que se aguarda com esperança, não um evento concretizado no passado (1 Jo 3.2-3).

Outro ponto baixo, dos dois últimos capítulos resumidos, se dá quando o autor busca explicar o significado de fé na proclamação neotestamentária. Sem dúvida, ele acerta em dizer que fé implica em deixar a confiança em si mesmo e depositá-la exclusivamente em Deus (cf. Gl 3.1-13). Todavia, a fé na pregação bíblica não se perfaz simplesmente num abandono abstrato da própria seguridade para se lançar num encontro existencial com o divino, mas, requer, também, atitudes específicas como a confissão de que os pecados pessoais ofendem a santidade de Deus e afastam o ser humano dele, além da confiança na salvação oferecida por Ele, em sua infinita graça, mediante seu Filho, que torna possível a reconciliação entre o homem e Deus (Rm 3.9-26; Ef 2.1-18).

Portanto, a fé não subentende o abandono da razão, como propõe Bultmann, mas o uso desta para entender a mensagem clara e inteligível do evangelho, depositando a confiança em tal mensagem. A mudança de vida mediante a fé em Cristo se caracteriza pela compreensão da verdade e uma transformação radical no modo de pensar, conforme o ensino paulino (Ef 4.17-24). Ainda que Deus seja incompreensível, Ele é cognoscível e sua ação redentora pode ser vista na história humana mediante a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo (Rm 5.8; Hb 1.1; 1 Jo 4.9-16).

[1] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e Mitologia. São Paulo: Novo Século, 2003. p. 7.
[2] Idem. p. 37
[3] HASEL, Gerhard. Teologia do Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2007. p. 329-330.
[4] Ver síntese do pensamento destes teólogos em OLSON, Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida, 2001. p. 557-568.
[5] BULTMANN, Rudolf. Op cit. p. 12.
[6] BULTMANN, Rudolf. Op cit. p. 26.
[7] BULTMANN, Rudolf. Op cit. p. 27.
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Fonte:http://tiagoabdalla.blogspot.com/2009/06/jesus-cristo-e-mitologia.html

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Fé, emoções e imaginação

29.12.2015
Do portal ULTIMATO ON LINE, 12.2013
Por Ricardo Barbosa de Sousa

 50 anos sem C. S. Lewis

Um dos escritores que mais influenciaram o cristianismo no século 20 não foi um teólogo, nem um pastor ou missionário, não ocupou grandes púlpitos, não viajou pelo mundo afora pregando em grandes catedrais. Foi um professor universitário de literatura, tímido e que, até a sua conversão, aos 31 anos, fora um ateu convicto. Clive Staples Lewis (1898–1963), conhecido como C. S. Lewis, tornou-se um dos maiores pensadores do cristianismo moderno.

Uma pesquisa realizada há alguns anos entre os leitores da revista americana “Christianity Today” mostrou que, depois da Bíblia, o livro que mais influenciou suas vidas foi “Cristianismo Puro e Simples”, de C. S. Lewis. Uma das razões para a influência contínua dos seus livros entre os cristãos, na minha opinião, é a forma como ele relaciona a razão com a emoção e a imaginação na experiência da fé.

Para Lewis, se a razão era o meio natural para se compreender a verdade, a “imaginação era o meio que dava o seu significado”. A melhor forma de dar significado a conceitos ou palavras é estabelecer uma imagem clara para nos conectar com a verdade. Ele acreditava que a aceitação das coisas como elas se apresentam ao nosso intelecto revela uma fraqueza e um empobrecimento da compreensão da realidade.

Esse tema é retratado em “Surpreendido pela Alegria”, no qual ele narra sua experiência de conversão e descreve o crescente conflito entre a razão e a imaginação em sua formação: “Assim, tal era o estado da minha vida imaginativa; em contraste com ela, erguia-se a vida do intelecto. Os dois hemisférios da minha mente formavam acutíssimo contraste. De um lado, o mar salpicado de ilhas da poesia e do mito; de outro, um ‘racionalismo’ volúvel e raso. 

Praticamente tudo o que eu amava, cria ser imaginário; praticamente tudo o que eu cria ser real, julgava desagradável e inexpressivo…”. De um lado, “o mar salpicado de ilhas da poesia e do mito”; de outro, “um racionalismo volúvel e raso”. Foi sua impressionante capacidade de reconhecer o valor de ambos que contribuiu para a riqueza de sua obra.

Em seu livro “Cristianismo Puro e Simples”, ao falar sobre a relação entre a fé e as emoções, ele aborda o tema criando o seguinte cenário: “Um homem tem provas concretas de que aquela moça bonita é uma mentirosa, não sabe guardar segredos e, portanto, é alguém em quem não se deve confiar. Entretanto, no momento em que se vê a sós com ela, sua mente perde a fé no conhecimento que possui e ele pensa: ‘Quem sabe desta vez ela seja diferente’, e mais uma vez faz papel de bobo com ela, contando-lhe segredos que deveria guardar para si. Seus sentidos e emoções destruíram-lhe a fé em algo que ele sabia ser verdadeiro”.

O problema da fé não está na razão como meio para se compreender a verdade, mas na forma como respondemos a essa verdade emocionalmente. Para que a fé seja consistente, ela precisa conectar a razão com as emoções, e isso se faz por meio da imaginação. Ele reconhece que “não é a razão que me faz perder a fé: pelo contrário, minha fé é baseada na razão… A batalha se dá entre a fé e a razão, de um lado, e as emoções e a imaginação, de outro”.

A fé como expressão lógica da razão atrofia a alma num cristianismo árido. Contudo, a fé como expressão de sentimentos e emoções envolve a alma numa espécie de balão, levado por qualquer vento, para qualquer lugar. O uso da imaginação integra a razão com os sentimentos e oferece à fé um significado real, para um mundo real.

• Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de, entre outros, “A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja”.

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Fonte:http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/345/fe-emocoes-e-imaginacao